A fofoca é a Idade da Pedra das redes sociais
Bisbilhotar, falar mal dos outros, criticar, tecer intrigas e espalhar mentiras não nasceu com as redes sociais. Elas organizaram e pioraram esse comportamento herdado dos antepassados mais distantes.
Estamos nos habituando a atribuir aos algoritmos e aos conglomerados de mídia digital todos os problemas de comportamento danosos que observamos na sociedade contemporânea. Também não nem vem ao caso aqui defender os bilionários do Vale do Silício e suas máquinas tecnológicas capazes de influenciar a política, os negócios, fomentar conflitos sociais e alterar, de fato, o comportamento de massa - em escala nunca antes imaginada. O buraco é mais antigo e mais profundo.
É que ficamos estupefatos com a quantidade de coisas que sabemos em fração de segundos, em particular as que envolvem tragédias, mortes, crimes, ataques racistas, xenofobia, terrorismo, eventos climáticos extremos e toda sorte de coisas que chamamos de discurso de ódio. E os principais vetores desses eventos, em matéria de velocidade, são as redes sociais. Que em seguida viram palco de confrontos ideológicos, disputas encarniçadas e de agressividade - muitos dos quais saem das telas dos telefones e migram para as ruas e viram até países inteiros de cabeça para baixo. Provocam quedas de governos e mortes.
Só que tem um porém: a internet, as redes e as tecnologias que nos conectam globalmente representam um trilionésimo de segundo em relação ao tempo histórico da existência humana. Vivemos milhões de anos ‘conectados’ pela luz das fogueiras, migrando em bandos para escapar de animais selvagens e garantir a sobrevivência dos primeiros clãs que se espalharam pelo vasto mundo ainda chamado de pré-histórico. Aliás, o “fogo” mesmo - feito e controlado pelo homem - deve ter surgido, segundo estudos paleontológicos e históricos, cerca de 80 mil anos antes de Cristo. Ou seja, até nossas fogueiras antes disso eram fruto de raios e vinham da natureza. Os homens ditos das “cavernas” apenas mantinham essa preciosidade sob controle quando ele surgia em algum ponto durante sua trajetória cega pelos territórios ermos de outrora.
Deixando de lado a divagação histórica, volto ao ponto: o homem mais remoto de que temos notícia e comprovação dos seus passos na Terra era, sim, um fofoqueiro por natureza, bem maior do que todos os seus descendentes, que somos nós. Os caras tinham tempo de sobra, vidas curtas, não tinham contas para pagar, nem trabalho específico ou preocupação muito além da sobrevivência. A dura vida era compensada pelo tempo juntos - quando se abrigavam dos eventos da natureza e de animais perigosos em cavernas e outros locais. E o que fazer durante tantos dias, horas e semanas juntos? Aliás, ninguém ligava para essa questão de tempo, uma convenção criada na Antiguidade Clássica. Era apenas a vida: viver, sobreviver, andar, garantir condições de proteção ao grupo e continuar a marcha.
Juntos por muito tempo, os agrupamentos, pequenos, desenvolveram vários dos hábitos que carregamos hoje, com mudanças históricas e comportamentais que cada época traz consigo. Mas havia mortes, brigas, disputas para ver quem liderava o clã e, claro, deve ter sido nesse meio que surgiram - por meio de urros, gritos, berros? - os xingamentos que ganharam forma adiante.
Dali damos um longo pulo histórico. Até chegarmos à internet, às redes sociais.
Temos então os ‘homens das cavernas’ dos tempos das redes sociais: brutos, valentes, dispostos a xingar, brigar, ameaçar, coagir e até matar aqueles que consideram seus inimigos. Quem não faz parte desse rol de valentões e brigões virtuais se assusta e fica cada vez mais acuado com esse comportamento agressivo. O tempero dos algoritmos então é jogado conflito após conflito. E a sensação que fica é que estamos presos numa caverna escura e sem porta de saída. Esse é o universo paralelo forjado e moldado na contemporaneidade pelas redes.
Aparando exageros, absurdos e cortando excessos, mesmo assim nada tira dessa pequena análise comportamental histórico-hipotética o seu ponto central: desde tempos imemoriais, o fato é que carregamos essa semente da maldade dentro de todos nós. É parte da nossa composição mental. Pode ser que aflore, pode ser que seja menos presente. Pode até ser despertada - e alargada - por eventos traumáticos pelos quais passamos ou vivenciamos como passivos ou ativos. Isso, por outro lado, não atinge 100% dos seres humanos, nem de forma nivelada, inclusive porque existem elementos culturais, geográficos, fusos-horários e distâncias que nos separam - ainda bem -, senão estaríamos numa guerra do fogo de proporções universais há tempos.
O que nos faz “piores”, na contemporaneidade, talvez seja essa sensação cada vez maior de perda da identidade de grupo. Tivemos o que seria nossa imagem mais autêntica homogeneizada para que coubéssemos na definição de “grupos” após o advento das ditas redes sociais. Temos centenas, milhares ou milhões de “amigos ou seguidores” com os quais não conversamos e nem tempos afinidade. As máquinas deram essa conformação de igualdade, amizade e identificação - tudo completamente fluido, falso e sem a menor condição de se sustentar. Somos elos fracos das correntes de interesses financeiros - essas sim as reais donas da situação - das corporações transnacionais de mídia digital que “governam” o mundo.
Passamos de fofoqueiros dos tempos das cavernas a consumidores e esparramadores de mentiras em larga escala. E espumamos de raiva toda vez que dizem que estamos mentindo. Depois é só esperar a próxima corrente de WhatsApp para seguirmos adiante com nossa marcha insana em direção ao abismo desconhecido das redes.
Nos restam dores, distúrbios mentais e outros problemas que alimentam os cofres dos grupos que gerenciam esse caos todo - que nossos antepassados mais remotos não tiveram a falta de sorte de ter. Sofriam muito, mas nunca imaginaram que nós, seus descendentes, iríamos passar tanto perrengue quanto os que passamos hoje.
Enfim, conectados e presos à mesma teia. E chamam isso de rede. Que está mais para rede de fofocas paleolíticas com ares tecnológicos e mais agressividade.