A política revela até onde vai a 'educação'
O curioso fenômeno das pessoas cordiais, finas e gentis que viram verdadeiros trogloditas quando começam a falar de política e discutir questões ideológicas. Que tempos são esses e de onde vem isso?
Antagonistas políticos gerados no ambiente virtual/IA Wonder
Perdi a conta de quantas vezes ouvi da boca de pessoas de outras regiões do Brasil elogios rasgados ao comportamento dos paulistas e paulistanos. “Nossa, como são gentis, finos, educados”, costumam dizer vários que por aqui aportam e passam alguns dias a passeio. O mesmo acontece quando paulistanos viajam ao Norte/Nordeste ou sulistas visitam o Centro-Oeste ou, ainda, pessoas dessa região passam dias na condição de turistas pelo Sul. Muitos brasileiros também ficam encantados com os europeus - ah! os europeus! - durante viagens a Paris, Berlim, Londres, Roma e outras capitais europeias. “São charmosos e muito corteses”, repetem muitos.
Experimente falar de política
Tudo isso é verdade até a página 2, como se diz no popular. A coisa muda de figura rapidamente quando alguém toca em qualquer tema da política, um assunto que se tornou um ‘veneno’, para usar uma expressão até comedida. É quase certo que a outra pessoa vai mudar de humor, começar a xingar esse e aquele, soltar impropérios e destilar todo o ódio que sente por certos grupos, partidos, figuras públicas e movimentos sociais. Numa redução rasteira, eis que a política parece ter virado o revelador da ‘educação' de uma pessoa, independente de quantos anos essa pessoa estudou, qual a sua formação profissional e seu nível socioeconômico.
Aquele parente que tínhamos em alta conta parte com um quente e dois fervendo se alguém ousa explicitar demais seu perfil ideológico, o que também não é diferente da outra parte que o confrontou. A senha é falar o nome de um político ou agremiação partidária: o ringue estará preparado e somente um “deixa-disso” pode evitar, em muitos casos, que se atraquem e saiam aos murros, xingamentos e empurrões. Obviamente, estou pintando a coisa ainda pior. Existe, há algum tempo, um “pacto silencioso” na maioria das famílias que diz o seguinte: “Vamos falar de tudo, menos de política”. Questão de sobrevivência, mostra a dedução lógica. Ou todo mundo mataria todo mundo, não literalmente, por óbvio.
Ou seja, chegamos ao ponto de ser necessário o abandono da saudável discussão política que existiu outrora em troca de alguma paz. Para garantir que o churrasco termine sem mortos, que as pessoas possam continuar a trocar uns abraços ou consigam até mesmo mandar mensagens de aniversário, participar de casamentos, batizados ou festinhas familiares. A coisa está feia e todo mundo sabe. Piora sempre que temos ano eleitoral - o que no Brasil significa a armação de uma arena de brigas político-ideológicas a cada dois anos. O calendário eleitoral meio que dita o ritmo das desavenças familiares e entre antigos grupos de amigos.
Polarização x falta de educação
Sim, os velhos grupos de amigos meio que se dissolveram e viraram essa coisa meio pantanosa, que você evitar pisar fundo ou falar certas brincadeiras como se fez durante muitos anos antes da era em que as disputas políticas não eram mais importantes do que as amizades. Estou exagerando, mas tirando uma coisa ou outra, as coisas estão nesse pé. E pioram um pouco a cada dia, apenas sobrevivendo entre os intervalos das disputas eleitorais. O que chamam de “polarização” eu vejo como flagrante falta de educação mesmo.
Igrejas, todo mundo deve se recordar, há muitos anos, eram meio avessas à disputa política no tom de ferocidade como o que vemos hoje. A entrada maciça de líderes evangélicos para o mundo político e sua presença cada vez maior nos parlamentos, prefeituras e governos estaduais transformou muitos templos no Brasil em verdadeiros comitês eleitorais. A discussão central, em boa medida, passa pelo humor da política, da temática ideológica e dos “costumes”- essa a briga central da maioria desses líderes contra as “ideologias de esquerda" e os males a estas associados.
Todo esse clima e esse ambiente é apimentado em pregações, cultos e muitas mensagens em grupos de WhatsApp. Fenômeno também comum do qual nem as mais sisudas ramificações católicas conseguiram escapar. Viraram normais as brigas e discussões em grupos católicos acerca da postura do Papa Francisco, chamado de “comunista” e de “esquerdista" pelos ditos “conservadores”, pelo menos os que assim se denominam. Chegou-se até a difundir que o Papa teria morrido (nos últimos dias, por conta dos problemas de saúde do Sumo Pontífice) e que isso deveria acontecer logo. Loucura, loucura, loucura, mas tudo está registrado, distribuído e espalhado pelas redes, sites de notícias “independentes" e grupos de mensagens.
E as redes com isso?
Essa situação é, em grande parte, fruto do processo de divisão da sociedade em agrupamentos ideológicos mais fechados, trabalho feito com o suporte dos mecanismos e algoritmos das redes sociais. Sem eles, a velocidade com que ideias, notícias falsas, desinformação e mensagens de ódio não seria a que temos hoje.
As redes, de fato, não inventaram o ódio, a fofoca ou a desinformação, mas os potencializaram de tal modo que seu alcance é como se fossem jogadas diversas bombas atômicas por segundo, grupo a grupo, dia após dia, para consumo massivo. Por isso que se discute a maneira mais eficaz - e pelo mesmo motivo a mais combatida pelos donos das corporações de mídia eletrônica - que seria a “regulação das redes", cuja responsabilidade hoje se resume a hospedar, propagar e deixar correr solto todo tipo de publicação. E até instigar certos comportamentos ao dar-lhes propagação, quanto maior seu potencial de causar discussão e desavenças - principalmente nos campos político e comportamental.
Voltando ao começo do que disse, tirando o exagero com o qual a situação foi pintada, é fácil saber até onde vai a “educação” - ou comportamento minimamente cortês de alguém: diga a essa pessoa tudo o que você pensa da política, do grupo político com o qual você se identifica ou em quem tem votado nas últimas eleições. Ninguém terá dificuldade para, vez por outra, presenciar a mudança de semblante do seu interlocutor ou interlocutora. Cobras e lagartos será pouco o que se ouvirá. Até pedido para se retirar do local virá com mais facilidade. Ou, noutro extremo, troca de insultos, socos, pontapés e até ameaças - muitas concretizadas - de morte.
Estamos em um beco sem saída. O texto reflete um desabafo. Até onde isso é real para você, leitor e leitora, fica a seu critério. Aqui é possível opinar sem ser xingado, mas já peço que tentemos manter o ambiente saudável. Pelo menos no campo virtual.
Caro Djair, "a coisa está feia" como canta a musica caipira. As desavenças político-familiares é um perigo. Natal foi assim com parentes no nordeste. Deus do céu. Sorrateiramente um bolsomínion meio parente se aboletou em nossa festa de natal e lá pelas tantas e tantas cervejas nos cornos chamou pra discussão política. Cadê a picanha do Lula, gritou. Uma mulher perguntou cadê as joias roubadas pela "Satanás". Cristo tende piedade de nós...
Ideologia é paixão e, como tal, uma péssima conselheira a quem busca equilíbrio de pensamento!