A última morte de 'O Espírito das Leis', de Montesquieu
Posse de Donald Trump para um segundo mandato nos EUA ocorre em um cenário turvo internacionalmente, de deterioração das democracias representativas e de incertezas sobre qual transição vivemos agora.
Imagem de Trump discursando gerada em IA Wonder
O mundo vive ciclos políticos e ideológicos, nas últimas décadas, que desafiam a máxima proposta pelo pensador francês Charles-Louis de Secondat, o Montesquieu (1689-1755). Em sua obra clássica, O Espírito das Leis, ele cravou a Teoria dos Freios e Contrapesos - com os poderes tripartidos autônomos entre si (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas controlando uns aos outros para evitar a autocracia ou o autoritarismo. Embora a ideia central apareça acima como um reducionismo do seu conteúdo mais amplo, Montesquieu pensou mais ou menos assim esse engenhoso sistema que passou a ser aplicado no que chamamos de democracia representativa. Deu certo. Até certo ponto da história.
No frigir dos ovos do pós-guerra (1945), passando por ditaduras, autocracias, democracias, criação e consolidação dos Estados de Bem-Estar Social e da globalização até chegarmos à queda do Muro de Berlim e ao desmantelamento da União Soviética, que selou a derrocada da Guerra Fria (1990), muita coisa aconteceu. Temos ditadores e autocratas espalhados pelos quatro cantos do mundo. As democracias tradicionais se esfacelam a olhos vistos em vários lugares do planeta. E temos agora Donald Trump iniciando um segundo mandato presidencial nos EUA com uma plataforma tosca, ameaças em escala global, verborragia, ataques a direitos e uma infinidade de temas que deságuam nos desequilíbrios climáticos e sociais.
O que esperar de Trump 2
Escrever sobre o que pode acontecer no segundo governo de Donald Trump passadas as primeiras horas de sua posse é como se atrever a jogar uma montanha de suposições e estar preparado para errar inúmeras previsões. Não é o que pretendo aqui. Futurismo e adivinhação caem melhor em outras paragens. De todo modo, vamos a algumas considerações a partir do que ele disse que deseja fazer.
O próprio presidente norte-americano antecipou muito do que pretende, embora saiba que nem tudo poderá ser colocado em prática. Isso foi dito na campanha, repetido após a eleição e reforçado, em boa parte, no discurso de posse dele nesta data (20 de janeiro de 2025, no Capitólio, a sede do Legislativo de lá). A promessa genérica feita durante o discurso, reproduzida com pompa e circunstância pela imprensa brasileira, é de uma Era de Ouro para a “América" - o nome que os estadunidenses dão à sua terra.
Trump falou contra suposto clima de “censura” vigente durante o último governo democrata, de Joe Biden; vociferou contra as mudanças climáticas, as questões de “gênero", diversidade, políticas inclusivas e uma infinidade de coisas que mantêm mobilizados os ditos “conservadores” que o admiram mundo afora.
Culpou a China por muitos dos males do planeta, prometeu retaliar a maior potência econômica em franca ascensão e sugeriu que a águia americana voltará a voar alto no mundo. Ameaçou o Panamá, o Canadá e a Groelândia e arrancou risos da platéia ao prometer mudar o nome do Golfo do México para Golfo Americano. Mistura de coisas reais com falsificações e bravatas - a salada mista do trumpismo.
Obrigou seu aliado Benjamin Netanyahu a assinar um cessar-fogo com o Hamas com o objetivo claro de deixar de enviar bilhões de dólares para a guerra patrocinada pelo governo Biden, que transformou Gaza em ruínas e manteve o atual primeiro-ministro israelense no poder até agora.
Por fim, sua política de deportação em massa, que deve atingir brasileiros e uma infinidade de nacionalidades que ora estão realizando os serviços pesados dentro dos Estados Unidos.
Ou seja, o que se pode esperar é que as coisas piorem muito até que piorem um pouco mais para termos alguma noção do que será pior do que estava antes dele.
Musk e Zuckerberg nos freios e contrapesos
Como mencionado no começo, a teoria de Montesquieu no livro O Espírito das Leis embutia a ideia dos controles de um poder sobre o outro - os freios e contrapesos. Agora, Trump promete mudar essa equação para o seguinte: delegar aos donos das duas maiores corporações de mídias sociais do mundo essa tarefa. Ou seja, Elon Musk (dono do Twitter/X e agora integrante do governo) e e Mark Zuckerberg (chefão do Facebook, Instagram e WhatsAssp) ditarão o que é ou não censura no mundo virtual. E servirão como "soldados" do novo mandato do homem da pele alaranjada.
O mundo dos bilionários
Um estudo recente da organização Oxfam revelou que o mundo ganhou cerca de quatro bilionários por semana, em 2024 (veja aqui a matéria). O governo Trump tem mais de uma centena deles em cargos estratégicos, a começar pelo próprio presidente e seu mais novo fiel escudeiro nas redes, Elon Musk. Como fez no primeiro governo, Donald Trump promete melhorar ainda mais a vida de quem acumula fortunas. Segundo ele e seu ideário, os ricaços sofrem muito com a interferência do Estado e sua mania de cobrar impostos dos ricos.
Suprema Corte e Congresso dominados
Enquanto fala, repete e ameaça, não custa lembrar que o segundo governo Trump vem recheado de uma mudança antes não verificada: o republicano governará com ampla maioria parlamentar, pois seu partido domina a Câmara dos Deputados e o Senado. No mais, com as indicações anteriores, o trumpismo passou a ter maioria na Suprema Corte dos EUA, em tese o órgão máximo do Judiciário que poderia vir a aplicar algum freio a eventuais sonhos autocráticos do presidente que acaba de assumir o cargo. Os juízes do STF de lá já adiantaram algo que pode piorar: mexer ainda mais em pressupostos legais centenários dos norte-americanos, dando aquela guinada para a extrema direita, cuja face pública é chamada candidamente de “conservadorismo”.
Resumindo: o mundo vive o suspense
Como um mágico com a cartola vazia e a mente fervilhando de promessas, ameaças, bravatas e fanfarronices, Trump fez o mundo ficar paralisado esperando um discurso batido desde a campanha, transformando sua posse em evento global pelo medo.
Como este texto foi escrito no calor das horas após a posse dele, faz-se necessário aguardar a segunda parte do suspense produzido pelo republicano: as centenas de decretos, determinações e outras resoluções a serem publicadas desta segunda-feira para a terça-feira (20 e 21) que levarão a assinatura de Trump e podem imprimir sua marca. A política de deportação em massa deve ser a mais urgente, garantem analistas de diversos veículos de mídia, e a que encontra maior amparo na base política dele.
No mais, é bom observar que um dos alvos da política externa do governo Trump e das suas promessas em nível internacional - a China - está até agora calada, muda e em compasso de espera. Nem tudo o que ele disse será feito, mas muito do que ameaçou e promete colocar em prática pode mexer com todo mundo, inclusive o Brasil.
Já os chineses, bom, os chineses certamente vão assistir à primeira temporada de Trump 2 para entrarem em campo. A outra incógnita do mundo com Trump é a China sem um cara como Trump no comando daquele país.
MUITO BOM
Bom texto, Camarada. No fundo do Trumpismo há um desejo de um governo com força e controle total do pais como tão bem faz a China e mantem uma estabilidade politica permanente. Acho que Tio San tem este desejo e quem sabe instale um governo forte como o da China.