Balanços, ansiedades e cobranças
Ora somos como empresas, ora como meros ansiosos, mas o tempo todo nos cobramos ou somos cobrados por alguma coisa que deveríamos ter feito: a vida entre os balanços que os finais de ano parecem impor
Não tem erro: chegou o final do ano e lá estamos nós com a fatura em mãos do que faltou fazer, ler, realizar e colocar em dia até aquilo que seria impostergável. Como ocorre com as empresas, cujas obrigações legais prevêem a realização do balanço contábil a cada encerramento de ano, nossas “pessoas físicas” já se acostumaram a essa romaria interna - que inclui lugares que não visitamos, pessoas que deixamos de encontrar por quaisquer motivos, filmes que poderíamos ter visto, shows que perdemos etc. A lista é sempre quilométrica no plano mental. Por fim, não esquecer que isso tudo pode entrar na conta da famosa e popular ansiedade, que assola a humanidade contemporânea de forma avassaladora.
Cada pessoa certamente usa um manual próprio de cobranças para realizar o seu balanço nesse período perto do Natal. Pode ser pelo lado afetivo dos lugares, das comidas, dos restaurantes, teatros, cinemas, dos produtos de consumo, roupas, presentes e bugigangas eletrônicas em geral. Ou seja, de sua lista, o que faltou, o que poderia ter acontecido, aquilo que o dinheiro não deu ou aquele presente esperado e que nunca chegou. Também o lugar que um parceiro ou parceira poderia ter dividido conosco, numa viagem, numa noite de comemoração ou em outro momento especial. Além disso, devemos lembrar que as famílias também contam as perdas de amigos, parentes e pessoas do convívio próximo, sabendo que a partir dali serão privadas dessa ou daquela companhia que se foi deste plano - coisa que foge ao controle humano.
Por sorte, alguns cuidados que tomo ao longo dos anos e também devido ao aprendizado da vida, tenho o prazer de cultivar raros momentos de ansiedade. Ando, cada vez mais, em busca dos momentos presentes e dos prazeres de olhar a vida correr, e procuro correr junto. Ter pessoas que amo. Ser olhado e cuidado por essas pessoas, tenho comigo, ajuda bastante nesse controle do que se tornou um problema muito grave para a humanidade nas últimas décadas. Tendo, portanto, um baixo nível de ansiedade, costumo fazer poucas cobranças a mim mesmo, mas não sou nenhuma entidade fora do que seria o normal entre seres deste planeta.
Desse modo, meu método pessoal de cobranças e de balanço envolve mais livros, cinema e música - acho que cada vez mais isso. E, claro, boas doses de viagens e companhias agradáveis para risadas e trocas de experiências.
Acrescentei, recentemente, o processo de releitura de livros e de volta a filmes que marcaram determinadas fases da minha vida. Uma forma de encarar como aquela obra era quando eu tinha 17, 18 ou 20 anos e como a vejo hoje, aos 60. Acho um exercício salutar para um mergulho na nossa evolução ou involução: ajuda a conhecer em que ponto estivemos e em que pontos estamos quando nos deparamos com aquela criação artística ou intelectual muito tempo depois.
Posso citar, por exemplo, a releitura de Admirável Mundo Novo, um clássico de Aldous Huxley, terminada em novembro último. Fechei o livro impressionado e com saudades. Foi como quando terminei, pela primeira vez, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García-Márquez ou Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Ou quando das leituras de Jorge Amado, Jorge Luís Borges, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Clarice Lispector - a lista mental só cresce a partir daqui e isso significa que não devo cansar o leitor (a) ou sugerir que sou um dos maiores leitores do universo. Longe de mim essa bobagem. Apenas tenho paixão e vício quando se trata de livros.
O mesmo eu digo do cinema. E, ao relembrar essas duas coisas como partes centrais do método que uso para o balanço pessoal, aparecem aquelas pontas de saudosismo e as velhas cobranças. É quase certo que esse processo de querer ter feito mais ou realizado mais ficou pior entre nós com a experiência coletiva da pandemia e ganhou ares de loucura com as redes sociais, a velocidade das coisas no mundo virtual e a facilidade que nos faz, aparentemente, mais espertos, sabidos e intelectualizados como nunca com mecanismos de busca como o Google. Pelo menos no campo da impressão e da ilusão. Carregamos no bolso esse segundo cérebro que é maravilhoso e danoso ao mesmo tempo, mas isso é tema para outra conversa.
Tenho, portanto, essa sorte de poder me preocupar com isso. De pensar em me dedicar cada vez mais a esse prazer e essa busca sem fim pelas coisas que a escrita, as palavras, a arte e a criatividade me proporcionam. Não tenho sangue de barata para ignorar as demais questões da existência humana, principalmente de pessoas próximas e com as quais convivo ou trabalho. Apenas busco dar o peso a cada coisa e a cada problema no seu tempo. Na velocidade que meu controle de ansiedade e de cobranças manda. É uma maneira pessoal, que não tem uma fórmula ou foi fruto de uma epifania, mas do meu jeito pessoal de ser e de viver.
Resumindo, meu balanço de 2024, ainda não encerrado, aponta que vi bons filmes, li os livros suficientes, reli muita coisa boa, viajei bastante, encontrei e reencontrei muita gente legal, fiz novas amizades, abracei e beijei pessoas queridas e amadas, estive perto de quem amo e me ama e me abri mais para o mundo do que no ano passado. Isso é reconfortante e me faz pensar no sentimento de gratidão universal por todas as coisas boas que aconteceram até esses dias - e que apontam para um bom horizonte no próximo período.
Bom é cultivar bons sentimentos. Não é frase motivacional, mas algo real, que se reflete numa volta de coisas reais muito boas para você (pelo menos para mim). Se existisse uma pitada da minha fórmula pessoal nessa área, talvez essa seja uma: nutrir bons sentimentos em geral. E rir o máximo de vezes todos os dias.