Contradições, malícia literária e engenharia criativa em Monteiro Lobato
O escritor paulista tem um histórico de criações robusto no universo infantil, mas é nos contos e na aparente ingenuidade dos seus personagens que sobressaem sua malícia e suas contradições.
Sabe quando você pega aquele livro de bolso que ninguém comprou e foi parar num ‘cantinho de promoções’ a R$ 14,99 numa livraria de shopping? Esse foi o destino de MONTEIRO LOBATO - Melhores Contos, uma seleção feita pelo crítico literário, professor e pesquisador Gustavo Henrique Tuna (Global Pocket). Veio parar em minhas mãos não como uma grande novidade, mas para me fazer reler e pensar em alguns pontos da produção literária do “Pai da Literatura Infantil”. A propósito do livrinho, vários contos ali dispostos eu já havia lido, de maneira dispersa ou em outras épocas, principalmente aqueles publicados em Urupês, coletânea de 1918 considerada a obra-prima do escritor paulista José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948).
Adianto que não se trata aqui de uma análise aprofundada da vasta obra do renomado e polêmico escritor que criou o universo encantado do Sítio do Picapau Amarelo e tantos personagens que marcaram a infância e o mundo literário brasileiro. Vou me esgueirando entre o já lido, as críticas, algumas obras que revisitaram sua produção e, ao mesmo tempo, pontuando questões que vão e voltam quando se trata de avaliar a forma como Lobato conduziu sua linguagem, fosse nas obras infantis ou nos contos.
O livro de bolso que me inspirou este texto partiu da escolha do professor Gustavo Henrique, e tem o mérito de reunir textos de grande peso à época de sua publicação, com esmero e o cuidado que nem sempre as editoras ou editores têm quando se trata dos livretos feitos para “vender mais porque são baratos”. A obra traz seleção de contos publicados em Urupês (1918), Cidades Mortas (1919) e Negrinha, de 1920.
De cara, qualquer leitora ou leitor que passe os olhos sem pressa na linguagem de Lobato notará seu desprezo por certos cuidados que muitos dos seus contemporâneos tiveram em suas produções. Ele deixava clara sua disposição de marcar território - no caso dos contos em questão - no campo ideológico: um conservadorismo arraigado, interiorano, independente do que lhe fora acrescido intelectualmente com sua sólida formação acadêmica na área do Direito. Não se importava em disparar contra os caboclos, a quem sapecou desde logo a pecha de Jecas-Tatus, como é o caso do texto A Velha Praga. Nele, Monteiro Lobato elogia fartamente os italianos como trabalhadores e empreendedores, enquanto os caipiras daquelas paragens “mortas”, na sua descrição amarga e dura, faziam de tudo para atrasar a vida e reproduzir a miséria, geração após geração. Eram como tocos com fogo aceso por dentro, sempre prontos para voltar a destruir tudo assim que passassem as chuvas.
Embora tenha uma linguagem que diverte, mesmo com seu veneno, o conto O Romance do Chopim (também grafado em outras publicações como O Romance do Chupim) descreve as mulheres na velhice - no caso as professoras - de forma tão crua e sem meias palavras que a leitora do universo feminista, por exemplo, poderia sentir vontade esganar o autor, caso tivesse vivido em sua época. A título de exemplo, as professoras, que se deixavam seduzir por indivíduos interesseiros (os ‘chupins’ do conto), seriam ‘feiaronas’, não sabiam se vestir, tinham perdido o viço juvenil e estavam na mesma condição de tempo das roupas recolhidas do varal pela lavadeira. O texto é composto por uma dose cavalar de misoginia e, grosso modo, fazia um contraponto à questão de gênero, reforçando a maneira como o escritor via as mulheres do seu tempo e os esforços pela busca da igualdade de gênero.
A coletânea tem diversos contos que, ora nesta linha, ora em outras bem piores - do ponto de vista da acidez do autor -, mostram um Lobato nada disposto a contemporizar com o que achava ou pensava da vida no seu tempo. A sua melancolia quando fala de pequenas cidades que definharam com o tempo e por conta dos hábitos ‘atrasados’ dos seus habitantes é patente. As Cidades Mortas levam uma paulada atrás da outra nas linhas por ele publicadas.
Do ponto de vista estético e histórico, é importante lembrar o quanto os escritos dele traduziam, de forma poética e angustiante, os contrastes entre a vida rural e a urbana.
Ainda há que se ressaltar que nada tira de Monteiro Lobato contista a condição de exímio manejador de palavras, garimpeiro de expressões mortas com a passagem dos anos do nosso universo literário e, sobretudo, um indivíduo dotado de uma incrível capacidade de usar da malícia com maestria, a ponto de você ler e rir de inúmeras passagens e descrições que ele faz dos lugares, das pessoas e da condição do brasileiro de outrora.
Não é por acaso, inclusive, que Lobato foi um tipo ranzinza nesses e noutros textos, sem deixar escapar a seu receituário racista, misógino e carregado de toda sorte de discriminação e preconceitos muito do que conhecemos no universo do Sítio do Picapau Amarelo. E daí, lembremo-nos, foi um passo para suas brigas sem fim com a turma do Modernismo, cujo desprezo gerou discussões que foram muito além da Semana de Arte Moderna de 1922 e até hoje se espraiam na academia quando se trata de analisar essa fase da arte brasileira.
Dito, passado e revisto, esta pequena análise não tem interesse em diminuir a importância da leitura da coletânea em questão. Pelo contrário, faz-se cada vez mais necessário ler o escritor que revolucionou o campo das letras voltado para crianças no Brasil, deixou uma vasta produção literária, a despeito de muitos erros deixados pelo caminho, a linguagem torta, seus abusos no campo descritivo e suas irrefreáveis maneiras de deturpar a realidade para fazer valer seu jeito de ver o mundo.
Ele tem um lugar marcante na história da literatura brasileira, com ou sem revisionismo. E, claro, ficam as dicas para interessados (as) na leitura de obras importantes que analisaram, essas a fundo, a produção de Lobato, como é o caso da biografia Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia, de Carmen Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Valdimir Sachhetta, de 1997.
Monteiro Lobato, com certeza, tem muito a ser descoberto, e isso ocorre por meio do conhecimento cada vez maior de sua obra, seja para adultos, seja para crianças.