Documentário desfaz o mito de Lampião 'invencível' a partir dos seus inimigos
Dirigido por Marcelo Felipe Sampaio, com roteiro do escritor Moacir Assunção, longa mostra a saga dos Nazarenos, amigos de infância de Lampião que romperam com o cangaceiro e o caçaram sertões adentro
Por si só, a história que produziu o mito de Lampião, o Rei do Cangaço, até hoje é capaz de mover paixões, atiçar curiosidades e toda sorte de antagonismos desde que foi encerrada com a sua morte, em julho de 1938. A literatura de cordel e as recontagens de suas aventuras acabaram por espalhar uma espécie de ‘invencibilidade’ atribuída ao cangaceiro quase que com uma aura de heroísmo.
Questionada com o passar dos anos por pesquisadores, historiadores e estudiosos do tema, a figura mítica cai por terra quando se assiste ao documentário Acordo com Lampião? Só na Boca do Fuzil!, longa dirigido pelo cineasta paulista Marcelo Felipe Sampaio, com roteiro do escritor, professor e pesquisador Moacir Assunção – baseado no livro publicado por ele com o título Os Homens que Mataram o Facínora – a História dos Grandes Inimigos de Lampião (Edições Realejo, 2021).
O escritor Moacir Assunção e a capa do seu livro/Reprodução
O fio condutor do roteiro é a saga dos Nazarenos, moradores da pequena vila de Nazaré do Pico, distrito do município pernambucano de Floresta, onde Virgulino Ferreira da Silva, o futuro Lampião, passou os primeiros anos de vida com a família. Os Nazarenos foram amigos de infância de Virgulino. Moacir Assunção e Marcelo Sampaio empreenderam uma viagem no tempo com as filmagens do documentário, recheando a narrativa com depoimentos de figuras importantes de outrora daquele universo – algumas em imagens raras e até inéditas – e entrevistas com especialistas, pesquisadores e guias que recontam a história do Cangaço nos locais onde tudo aconteceu no passado.
Os Nazarenos, como ficaram conhecidos os integrantes desse grupo familiar local, passaram 20 anos em perseguição ao bando de Lampião pelos sertões adentro, indo a diversos lugares onde a turma do famoso cangaceiro estivesse ou sempre que tinham notícia da presença deles. Eles deram praticamente início à caçada que somente anos depois foi assumida pelas autoridades policiais, e que terminou com o assassinato dos principais cabeças do grupo liderado por Virgulino, em 1938, incluindo o próprio e sua famosa companheira, Maria Bonita.
O ACORDO QUE NÃO VINGOU – Um ponto alto da história mostrada no filme é que Lampião fez inúmeras ameaças, mas nunca teve coragem de invadir a pequena vila de Nazaré do Pico, pois sabia que seus antagonistas eram tão ou mais corajosos do que ele, e conheciam bem a região e o terreno por onde circulavam e viviam. Nenhuma tentativa de submeter o povoado deu certo, dando origem à proposta de “acordo” que teria sido feita pelo próprio Virgulino aos líderes dos Nazarenos – o que foi prontamente rejeitado por eles. Todavia, os valentes moradores locais – embora tenham enfrentado várias vezes o principal grupo de cangaceiros e seu líder – não lograram o êxito na caçada a Lampião e seu bando, que acabaram cercados e mortos pela polícia de então no sertão alagoano.
AS BATALHAS – O entrelaçamento das histórias contadas no livro ganhou vida e ritmo no documentário, colocando o espectador nas trilhas secas e quentes dos sertões por onde se desenrolou o Cangaço. Foram praticamente feitas reconstituições de batalhas travadas entre cangaceiros de Lampião e os Nazarenos, narradas por figuras que conheceram de perto o que se passou – incluindo parentes dos antigos moradores de Nazaré do Pico e ex-cangaceiros entrevistados para o livro ou em imagens recuperadas pelo diretor do filme. A trilha sonora ajudou a deixar o clima de documentário histórico ainda mais fiel.
UM CORDELISTA NA TRAMA – No começo da produção, o cordelista cearense Costa Senna, artista bastante conhecido no universo cultural de São Paulo, declama um poema composto por ele especialmente para a trama. A voz marcante e compassada de Senna transporta para o mundo sertanejo dos Nazarenos quem ainda está se preparando para ver as primeiras cenas do filme. Casou perfeitamente com a proposta esse elemento poético que representa um recorte importante da cultura popular nordestina – no caso o cordel – que deu ampla divulgação no passado – à figura mítica de um Lampião herói regional.
PREMIAÇÕES – A qualidade técnica de Acordo com Lampião? Só na Boca do Fuzil! não deve nada em relação a outros documentários produzidos no Brasil recentemente. O filme, inclusive, ganhou três prêmios no festival inglês BIMMIFF – de melhor direção, melhor cinematografia e melhor edição.
ONDE ASSISTIR – O documentário já foi exibido em diversos lugares do Brasil, com destaque para uma turnê do cineasta e do roteirista pela região Nordeste e, em seguida, em salas de cinema de São Paulo. Atualmente é possível assistir à produção em variadas plataformas de streaming, dentre as quais a Amazon Prime – onde eu acabei assistindo.
Vale muito a pena assistir e entender esse personagem e o contexto histórico em que ele viveu – olhando tudo da perspectiva daqueles que foram os primeiros a desmontar o mito de Lampião.