Hans Kelsen ou Janzkélssi?
Texto traz biografia imaginária gestada no 'Direito Paralelo'. A vítima é um famoso filósofo e jurista que viveu na Áustria, embora fosse brasileiro de alma e carteirinha. Leia por sua conta e risco.
Qual seria a verdadeira identidade do famoso jurista?
A historiografia oficial trata determinados personagens do mundo jurídico de forma enviesada, não raro escondendo suas origens ou distorcendo fatos. Foi preciso lançar mão de um poderoso esforço de investigação histórica e apelar à dedicação de pesquisadores anônimos para que a vida de um pensador de grande expressão do mundo do Direito ganhasse contornos mais realistas.
Este é o caso do jurista e filósofo nordestino que, décadas após seu nascimento, o mundo passaria a conhecer como Hans Kelsen. Ele, na verdade, pode ter sido o “Menino danado” Janzkélssi.
Os fatos paralelos
Natural de Caicó, Rio Grande do Norte, foi batizado na capela do pequeno sítio familiar no longínquo ano de 1881. A família do hoje famoso Kelsen era originária do sítio Manhoso, distante 15 quilômetros da sede da então Vila do Príncipe, no sertão do Seridó, que viria a se tornar município naquela quadra do século XIX.
Na pia batismal, o pai, agricultor, e a mãe, costureira e “do lar”, deram-lhe o curioso nome de Janzkélssi, provavelmente uma corruptela de um antigo personagem de histórias do folclore austríaco chamado vulgarmente de Johns Kess. Não se sabe ao certo como pessoas de vida simples e do campo como os pais de “Janz” teriam chegado a conhecer a história desse austríaco, mas é certo que isso ocorreu por conta da influência holandesa na região, provavelmente trazida por cristãos novos ainda nos primórdios da colonização daquele pedaço do sertão potiguar.
Janzkélssi Pereira Souza, seu nome completo, tinha tudo para repetir a sina do pai na labuta campesina, na lida com as poucas reses que davam sustento à família ou no plantio sazonal de macaxeira, feijão e milho.
Era filho único e, desde cedo, mostrou “tendências estranhas”, diria mais tarde seu pai em memórias populares que correm até hoje na região – infelizmente sem registro escrito. Teria dito o senhor Leogilson Souza: “Fala demais em leis, em leis e natureza, em regras e em coisas que não existem aqui nesse lugar. Não sei de onde tira essas doidices”. E complementara: “Deve ser do rádio. Dei a ele um Motoradio velho que ele fica ouvindo o dia todo”.
Quando Janz completou 10 anos, em 1891, a família vendeu tudo no Sítio Manhoso e foi de mala e cuia para Caicó, que virara município em meados daquele ano. Uma província, mas com alguns confortos até então desconhecidos por eles.
Mas o “Menino danado”, como o chamavam a mãe, tias e os avós, “queria estudar, aprender e ser professor”. Então foi matriculado no Grupo Escolar Vilagran Cabrita, recém-inaugurado na sede do 1º Batalhão de Engenharia de Construção – que viera ajudar nas obras do Açude Itans, reservatório que até hoje abastece o município.
O surgimento do Direito Positivo
Não demorou e ele logo sofreu reprimendas na escola. Professores e professoras não admitiam sua mania de falar sem parar, gesticular e de criar histórias. O que os mestres e mestras de outrora sequer desconfiavam é que estavam diante de uma mente brilhante, cujas elaborações marcariam para sempre o universo do Direito.
Nada acontece por acaso, já diz a sabedoria popular. O caso de Janzkélssi não foi diferente: reprimido na escola, em casa e nos meios sociais simples por onde circulava, não lhe restou alternativa senão o rompimento com as “estruturas” da época. A propósito, o termo “estruturas”, disse anos depois, tomara emprestado de um programa noticioso que ouvira na rádio Deutsche Welle (Voz da Alemanha).
“Pragmático”, quando sequer existia essa denominação naquelas paragens, Janzkélssi saiu de casa e passou a perambular pelos sítios e pequenas cidades da região. Já era adolescente e misturava discursos inflamados que ouvia no rádio a fragmentos de notícias de jornais velhos, bem como leituras ocasionais em bibliotecas por onde passava.
Sua primeira grande teoria, embora suponham ter-lhe ocorrido por obra do acaso, guarda relação com um hábito popular muito difundido no sertão nordestino: o “jogo do bicho”, inventado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel.
A rapidez com que o tal jogo se espalhou pelos sertões tão logo criado em terras cariocas preocupou as autoridades, que passaram a reprimi-lo, levando-o à clandestinidade. Claro que Janz não se tornou um “viciado” no jogo do bicho, mas como bom observador encontrou no canhoto do jogo o que seria sua inspiração para obra de repercussão no campo jurídico. Ele viu que em todo canhoto havia a frase “Vale o que está escrito”, uma advertência ao jogador de que não seriam aceitas rasuras e nem tampouco se pagaria além daquilo que estava grafado. Pronto: surgiu na sua mente inventiva o que mais tarde nortearia sua conhecida elaboração acerca do “Direito Positivo”. Ou seja, somente o que estivesse escrito (na lei, no papel, no acordo ou pacto) é que passaria a ter valor. Daí apareceu o que mais tarde se convencionou chamar de “Positivação”, isto é, a “lei posta”, “escrita” – que passaria a ter valor.
A pureza da pinga, do fumo ou do Direito?
Após essa epifania, Janzkélssi não parou mais. Outra grande sacada do “Pensador do sertão” – era assim que agora o chamavam nas redondezas – foi a chamada “Teoria Pura do Direito”, que viria a ser outra obra de destaque em todo o Ocidente.
Obviamente, novo acontecimento fez com que nosso intrépido jurista fizesse tal descoberta. Aparentemente ocasional, mas não foi bem assim: a “pureza”, em sua manifestação inicial, a bem da verdade, veio de duas manias que Janzkélssi passou a cultivar. Uma foi tomar uma “pinguinha” e outra foi fumar cachimbo ou mascar fumo de rolo. Isso mesmo: a “teoria pura” (do Direito) surgiu de modo acidental. Quem não se lembra dos casos de Arquimedes ou de Benjamin Franklin?
Pois bem: seu vício de provar de mais e mais aguardentes acabou gerando o hábito de comparar quais eram “puras” e quais eram “impuras”. Hoje seria um “sommelier” da branquinha, pois tinha paladar e olfato refinados, embora as provas constantes lhe rendessem porres homéricos. Além disso, gostava de provar fumos de marcas variadas, tendo decidido que o fumo “mais puro” vinha do sertão de Alagoas, mais precisamente de Arapiraca.
Velho Mundo, novo nome
O ambiente sertanejo tornara-se pequeno demais para uma mente que não se acomodava e inventava cada dia uma nova coisa. Foi então que lhe vieram à mente as lembranças dos tempos de infância, quando ouvia rádios do estrangeiro. Na primeira década do século XX, Janzkélssi estava decidido a deixar as terras poeirentas dos seus pais e empreender a maior mudança de todas: ir morar “nas Orópa”, como se dizia popularmente.
Sua oportunidade surgiu quando pegou carona num caminhão FNM e acabou no Porto de Natal. De lá, de forma clandestina, embarcou em um navio estrangeiro que, sem que ele soubesse, foi parar justamente na Áustria, capital do então Império Austro-húngaro, um dos palcos do primeiro grande conflito que a humanidade conheceu naquele tempo – a Primeira Guerra Mundial.
Naquele clima de confusão, alistou-se no exército do Império Austro-húngaro, galgando rapidamente os postos de cabo, sargento e tenente. Chegou a capitão, mas não ficou nos campos de batalha até o final do conflito. Sua capacidade de expressão logo o levou ao posto de elaborador de estratégias militares, reavivando sua veia jurídica. Também foi nesse período que acabou mudando até mesmo de nome.
Foi ali que forjou para si um novo nome e uma nova identidade, conforme revelado somente décadas depois. De Janzkélssi, de difícil pronúncia e grafia para os austríacos, passou a se chamar Hans Kelsen, mais próximo do idioma praticado no “Sacro-Império Romano-Germânico”. Nascia ali o jurista, crescia ali o filósofo e se consolidaria ali um importante militar.
Antes do final da guerra, Hans Kelsen já havia galgado um posto de prestígio: consultor jurídico do Ministério da Guerra Austríaco, o que facilitou sua ascensão no campo da elaboração teórica, cujo ápice foi o convite – no pós-guerra – para redigir a Constituição Austríaca e criar o que seria a Suprema Corte daquela nação europeia.
O Controle de Constitucionalidade
De novo, como sempre lhe ocorria, nada acontecera pelas leis da casualidade, como foi a sua ideia do consagrado Controle de Constitucionalidade. A coisa surgiu assim: no campo de batalha, então no posto de sargento, Kelsen percebera que os soldados só obedeciam aos seus comandos na base do porrete e da paulada. Era uma forma “eficaz de controle”, observara no calor do conflito.
Quando jurista renomado, Kelsen lembrou-se daqueles momentos cruciais para teorizar – e convencer o mundo jurídico da época – de que deveria existir um “comando supremo”, no caso a “Constituição”. Assim, as normas deveriam obedecer a um princípio hierárquico: normas “simples”, do cotidiano, ditas então “menores”, deveriam obedecer a outras que chamou de “superiores”. Na prática, estava criada a submissão das normas à Constituição.
Também contribuíram para isso suas reminiscências da infância em Caicó, quando olhava as montanhas locais e pensava numa “pirâmide” (normas em cima, normas embaixo, ditas aqui de forma hipotética).
Sua vida e atividades filosóficas lhe renderam prestígio e uma posição antes sequer sonhada. Não se lembrava mais dos duros tempos de vida no sertão potiguar. Foi nessa época que se converteu ao judaísmo, tendo ido morar na Alemanha no período anterior à Segunda Guerra Mundial.
Embora trouxesse no interior a veia nordestina da coragem e da valentia, viu que era de bom tom não enfrentar o crescimento das ações e dos movimentos que deram na ascensão do Nazismo, por meio da figura nefasta de Adolf Hitler na Alemanha. Por isso, tratou de empreender mudança para os Estados Unidos da América, onde viveu até a morte, ocorrida no ano de 1973. Em terras norte-americanas, Kelsen lecionou em prestigiosas universidades e completou sua obra, até hoje um marco no mundo do Direito e geradora de polêmicas aparentemente intermináveis.
Ainda fez duas viagens ao sertão do Rio Grande do Norte, antes de falecer: uma em 1970, quando criticou o regime militar e quase foi preso – sorte que era cidadão brasileiro e conhecido mundialmente naqueles tempos – e outra em 1972, quando a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) inaugurou, na Praça da Matriz de Sant’Anna, um busto em sua homenagem.
Seus restos mortais estão na Universidade de Berkeley, mas sua lembrança ecoa até hoje sertão afora como “O Menino Danado do Seu Leogilson”.
Como no clássico bordão do ator Jack Palance, "Acredite se quiser”.