Insônia animal, pesadelo humano
Artigo publicado no meu site aborda as tragédias ambientais do momento, tais como estiagem, fumaça, queimadas e incêndios florestais, e liga essa temática ao livro "Quando os bichos perderam o sono".
Em 2009, durante viagem ao interior de São Paulo, surgiu na minha cabeça a ideia que originou meu segundo livro de literatura infantil – Quando os bichos perderam o sono (Palhação Azul Editora, 2021). Escrevi o texto naquele ano e, sem um motivo específico, deixei “engavetado” até chegar a pandemia do novo coronavírus (2020-2022). A ideia central era um evento sem explicação que teria gerado a fuga dos animais para áreas urbanas em várias partes do mundo, criando um caos gigantesco. A trama desaguava na perda do sono dos animais – e das crianças – que aparecem como suporte e protagonistas na narrativa para a sensibilização dos adultos.
Quando o livro era apenas uma ideia digitada no computador, um arquivo que hibernou por 12 anos no mundo digital, eu ainda não tinha a definição concreta de falar explicitamente da questão climática, embora já conhecesse conteúdos a respeito, estudasse o tema com curiosidade e já tivesse acúmulo razoável sobre as alterações pelas quais passávamos havia décadas no planeta. Acho que o recolhimento pandêmico deu-me tempo suficiente para refletir mais e entender que havia escrito algo que povoava muito o universo acadêmico e pouco o senso comum. Ou seja, eu havia criado uma história simples, original e com relativo avanço sobre o tema, direcionado ao público infantil e infanto-juvenil – como é o caso dos meus outros dois livros já publicados.
Capa de Quando os bichos perderam o sono. Ilustrações de Altemar Domingos
Os anos se passaram, o livro se consolidou como uma das modestas referências na introdução do tema entre crianças e o planeta tomou rumos cada vez mais perigosos no campo climático. O fato mais recente, que envolve o Brasil em particular, ocorre neste mês de setembro de 2024, quando a cidade de São Paulo é apontada no monitoramento da plataforma suíça IQAir – parceira da ONU nessa área – como uma das metrópoles mais poluídas do mundo, dentre todas as grandes cidades listadas (veja aqui matéria do jornal Folha de SP sobre o assunto). Sem chuvas e com péssima qualidade do ar, a capital paulista resume o drama climático no país do agro, dos canaviais, do boi e do pasto.
A falta de chuvas, as queimadas (muitas delas criminosas), a poluição e a fumaça são fenômenos com os quais o Brasil “convive” como se pretendesse sua naturalização – uma espécie de “desastre natural”. A capital do estado mais rico e populoso da federação brasileira é apenas uma parte das regiões que passam pelo mesmo problema, e que se agrava ano após anos. O processo de exploração intensiva dos recursos naturais, o avanço das pastagens, a derrubada de matas nativas (e sua queima intencional, inclusive) e a tendência de boa parte do setor ruralista de desdenhar do assunto, com uma visão política suicida, jogam o país numa encruzilhada ambiental sem precedentes. De quebra, temos o Congresso Nacional mais antiambientalista de todos os tempos, preocupado em desregulamentação, em ampliar privilégios para os desmatadores e afins, cumprindo tarefa de estafeta da turma da destruição.
A obra que produzi, portanto, navega nesse universo de adultos desesperados para juntar o máximo de dinheiro destruindo biomas naturais no menor tempo possível. E de futuros cidadãos e cidadãs, hoje mirins, que tomarão as rédeas do país em poucas décadas. É para essas novas gerações que o livro se destina: mostrar o que está por trás da insônia dos animais e que, mais cedo ou mais tarde, tudo se converterá em pesadelo humano. Já estamos nessa fase, mas fingimos estar longe dela, com o ar-condicionado ligado, a nossa água de qualidade para refrescar e hidratar o corpo e a nossa comida farta – isso para a parcela que tem acesso a praticamente tudo, claro.
O que preocupa é a sensação de que tudo será esquecido em alguns dias, quando a chuva voltar, quando os incêndios estiverem sob controle e as pautas da imprensa se concentrarem em alguns escândalos, em prisões e solturas de celebridades ou em perfumarias quaisquer. Essa tem sido a tendência quando se fala entre nós da questão climática.
Por isso, considero fundamental a formação de toda uma geração, de berço, já antenada nas questões centrais que envolvem o futuro do planeta e o nosso futuro enquanto gente neste solo tão gentil conosco e ao qual damos tão pouco de volta.