Náuseas, sangue e ilusões em "A Substância"
Filme perturbador da diretora francesa Coralie Fargeat pode ser adjetivado de inúmeras formas, mas seu conteúdo não deixa dúvidas: o ser humano é pior do que aquele que Demi Moore topou viver na tela.
Imagem de monstro gerada em ambiente virtual de IA
Nauseante, angustiante, exagerado, provocativo, sujo, imundo, sangrento, catártico, desafiador, desequilibrado, perturbador, assustador, desvairado, terrível, desqualificado, feio, abusivo, funesto, perverso, maldoso, podre, agressivo, cruel, visceral, audacioso, grosso, necessário…
A lista de adjetivos do parágrafo acima poderia ser bem maior e, sem exceção, todos se aplicariam ao filme A Substância, que tem Demi Moore no papel de uma atriz decadente que se submete a um estranho processo de transformação em busca da beleza perdida. Não é um longa-metragem fácil de ver. De olhar quieto. Nem com sangue de barata, aliás a única coisa que falta na película. Perturba, provoca náuseas mesmo. A cadeira do cinema é o único lugar seguro para o espectador quando desfilam diante de si monstruosidades dos mais diversos calibres.
Sobrou indelicadeza à diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat em A Substância. A cada cena, quando você pensa que ela exagerou, ela vem com outra pior. E uma terceira ainda mais horripilante. Tudo de caso pensado. A perda total da noção de como as pessoas reagiriam àquilo, faz do filme uma lavagem cerebral da qual ninguém escapa diante da telona. Você odeia, se indigna, se contorce, acaba tomado por sobressaltos, fica horrorizado, ameaça até sair da sala, mas quer saber que diabos a diretora vai fazer com aquelas duas mulheres cujos corpos são opostos. Eis que ela os mantém grudados – e dependentes um do outro – após iniciado o processo de ingestão de uma droga assustadoramente transformadora: a droga da beleza eterna, da mudança que as leva a um inferno sem fim.
Está mais do que explícito que a diretora propõe uma discussão sangrenta sobre a ditadura da beleza. Ou a busca tresloucada por esse elixir impossível de ser alcançado ao longo da existência humana. Nos tornamos monstros e monstras de nós mesmos a cada procedimento invasivo que objetive garantir anos ou meses de aparência jovial quando perdemos o viço. Ou, simplesmente, mandamos às favas a noção dos ciclos da vida humana para quem chega até a velhice: nascer, crescer, viver, envelhecer, passar pela decadência e morrer no estado melhor – ou pior – possível. Nada é escondido no filme. Com altas doses de crueldade e muito sangue para melar a cara do espectador e estampar o medo.
O filme suscita todo tipo de interpretação – e nisso certamente a diretora pensou quando também assumiu o roteiro. Vai causar raiva? Toma mil doses! Muita gente vai deixar as salas de cinema, os críticos vão vomitar palavras ferozes? Ela oferece em troca mulheres monstruosamente deformadas por uma substância, andando e soltando partes do corpo, sangue e gosmas verdes para todo lado.
É quase certo que Coralie Fargeat soubesse antecipadamente que muita gente associaria seu filme à discussão sobre a busca pela beleza inexistente a vida toda. Pela dor e angústia que as mulheres passam diante do espelho a cada quadra da vida que segue de forma avassaladora e inevitável. O fim de toda mulher, de todo homem, de todo ser. Tudo o que sabemos, mas a ilusão nos leva a adiar esse encontro que ninguém, em segredo, gostaria de ver diante de si um dia, mas verá.
Outro aspecto interessante foi como ela mostrou os homens que avaliam as mulheres: um bando de porcos, feios, velhos, moribundos, canalhas e sem a menor condição de olhar para si mesmos. Como, no geral, é o comportamento masculino, notadamente do campo adepto da misoginia. Foi uma sequência de socos na cara de certos grupos de machos que patrulham mulheres e cobram delas a beleza eterna, quando não passam de seres desprezíveis nesse papel, decadentes e imorais. A dor das mulheres, no filme, é acrescida da cobrança dos homens e do mundo que as rodeia. Ou seja, elas são cobradas triplamente: por si mesmas, pelos ditadores da beleza e pelo que, genericamente, chamamos de “sociedade”.
Até o ato de escrever sobre o filme traz de volta cada cena. Falar dele é, de alguma maneira, angustiante, mas é necessário que se fale – talvez não somente do que é mostrado na película. Mas daquilo que não queremos falar. Da dificuldade de aceitação dos nossos corpos em cada fase, pelo menos para a maioria de nós. Tem muita gente que vai viver e morrer sem ligar muito para isso, ficar de boa com o corpo que tem e que terá quando – e se chegar – à condição de idoso ou idosa. Só que os números do “mercado do embelezamento” e da estética não mentem e são gigantescos. As cirurgias, produtos, procedimentos estéticos e afins são cada vez mais apelativos. E a arte de esculpir corpos promete fazer milagres que o filme acaba no primeiro vômito mostrado.
A diretora já conseguiu o que queria com seu produto perturbador em forma de cinema. Os espectadores que sobram vivos vão ficar dias e dias martelando o que foi aquilo e como tiveram coragem de permanecer inertes na sala. Os críticos vão continuar elogiando e metendo o malho no filme. A curiosidade vai atrair mais e mais gente ao cinema. Depois, quando for para as plataformas de streaming. É um ciclo que, de qualquer maneira, todo criador quer ver sua obra passar. Seja no cinema, na literatura, no teatro ou em outro ramo da atividade artística.
Todavia, o que sobra de A Substância é uma lembrança sobre o que realmente estamos fazendo com nossos corpos. O preço que muita gente que conhecemos está disposta a pagar para ver a tal “melhor versão de si mesma” – que norteia a propaganda da drogra (a tal substância) oferecida clandestinamente no filme a uma Demi Moore no seu papel mais desafiador.
Não é segredo para ninguém que um grande número de pessoas do nosso convívio toparia injetar aquele produto nas veias para ver o que acontece. Duvidam? Tentem ver o filme sem adjetivações ou sem medo. Ou satisfeitos. É um desafio ver o filme.
Como dizia Belchior em Apenas um rapaz latino-americano, “ao vivo é muito pior”.