O 'conservadorismo' da estupidez
“Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta”(pensamento atribuído a Albert Einstein).
A estupidez humana assumiu e assume várias formas ao longo da história. A frase em epígrafe neste texto – atribuída ao físico alemão Albert Einstein – poderia ser uma forma de polidez para nos referirmos a um movimento crescente nos Estados Unidos que tenta se passar por ‘conservadorismo’. Não passa, na prática, de ataques frontais – coordenados – de determinados grupos à liberdade de expressão e ao acesso ao conhecimento em escolas públicas norte-americanas por meio do banimento de obras clássicas da literatura mundial e de outro tanto de produções literárias das últimas décadas. Isso é mais grave do que parece, a partir do reportado pelo jornalista Thiago Bomfim no portal UOL: Paulo Freire, Bíblia: escolas nos EUA baniram 10 mil livros desde 2021 (leia aqui a reportagem).
Se escudando em distorcidas premissas em torno da liberdade de expressão, grupos de pais de estudantes, em sua maioria adeptos do Partido Republicano, aliados a políticos e governadores do mesmo espectro ideológico, promovem uma caçada a obras de autores clássicos, livros que renderam cult movies e que, primordialmente, tratam de temas tidos por eles como sensíveis, em relação a minorias e sexualidade.
O comportamento troglodita não segue uma linha específica, visto que coloca no fogo do banimento figuras como o educador brasileiro Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido) e o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (Romeu e Julieta), além de James Joyce (Ulisses) ou mesmo J.K. Rowling (Saga Harry Potter) e J.R.R. Tolkien (O Senhor dos Anéis). Claramente, nunca leram um parágrafo de obra alguma desse naipe ou sequer foram ao teatro ou ao cinema. A estupidez precisa disso para se multiplicar e manter mobilizada sua massa de seguidores ignaros.
A lista é absurdamente louca
Mesmo livros que não abordam diretamente temas como aborto ou questões do universo LGBTQIA+ estão na lista de banimentos malucos desses grupos. Integram o rol insano de proibições relatos históricos como O Diário de Anne Frank, Morte no Nilo (Agatha Christie), Blade Runner (Philip K. Dick) e outros do ramo distópico e do autoritarismo como Fahrenheit 451 (Ray Bradbury) e 1984 e A Revolução dos Bichos (George Orwell), dentre outros.
Para tentar esconder a história do racismo, por exemplo, eles resolveram incluir na lista A Cor Púrpura, de Alice Walker, ou Uma Autobiografia, de Angela Davis.
Ataques crescentes em 2024
A reportagem de Thiago Bomfim mostra que esse processo de ataque à literatura usa a bandeira conservadora republicana há alguns anos, tendo experimentado forte crescimento desde 2021. Mas destaca que não houve redução da marcha persecutória nem mesmo sob o governo do democrata Joe Biden. Isso porque, no geral, os projetos de proibição de circulação de livros nas escolas públicas são bancados por governadores em estados sob controle político de “conservadores”, principalmente na Flórida e em Iowa. O federalismo impede, na prática, que o governo da União interfira nas políticas adotadas em cada Estado.
Em 2024, por exemplo, o número de títulos banidos foi o triplo do verificado em 2023. Somente na Flórida e em Iowa, destaca o texto, mais de 8 mil livros foram alvo do tacão conservador. Os números citados pelo repórter fazem parte de levantamento da ONG PEN – que luta pela liberdade de escrita, de leitura e de expressão nos Estados Unidos.
ONG fez campanha em jornais
Em janeiro de 2022, reportagem do jornal Folha de S. Paulo (acesse aqui, para assinantes) trazia a preocupação com o crescimento desse processo na terra do Tio Sam. Com o título Campanha de ONG de educação pede liberdade de expressão em meio a leis da mordaça nos EUA, a matéria citava campanha publicitária nos principais jornais americanos patrocinada pela ONG Fire (Fundação para os Direitos Individuais na Educação, na sigla em inglês). A ONG denunciava o avanço de projetos em diversos estados que cerceavam a liberdade de expressão e impediam a livre circulação de ideias no ambiente escolar. Os alvos preferenciais eram obras direcionadas a temas como sexualidade e raça nos ensinos básico e superior.
Levantamentos da plataforma Education Week – mostrados na mesma reportagem da Folha – apontavam que 35 dos 50 estados dos EUA haviam apresentado projetos e leis que amordaçavam a leitura e a liberdade de expressão, em particular para temas como sexualidade e outros ligados a minorias. E o pior: as leis e projetos previam punições e restrições para que professores não falassem de racismo e de “temas sensíveis” com seus estudantes.
Perseguição recente no Brasil
Aqui no Brasil, recentemente, alguns prefeitos, prefeitas e governadores resolveram imitar o comportamento retrógrado de legisladores e governadores conservadores americanos e passaram a atacar livros e obras de universos semelhantes àqueles perseguidos nos EUA. E partiram para campanhas de difamação e até de banimento público de livros. Teve até uma prefeita no interior de Santa Catarina que apareceu em rede social jogando livros no lixo (leia aqui) – sob alegação de que estariam “doutrinando crianças” contra o que ela – e seu grupo – acreditavam “ser o melhor”.
Por sorte que ações movidas pelos Ministérios Públicos de alguns estados buscam barrar tais iniciativas por aqui, já que o federalismo brasileiro, nesse ponto, é diferente do modelo norte-americano, não permitindo que estados e municípios legislem sobre tema que é de competência exclusivamente federal.
Como nazistas e fascistas
Em suas ações, esses blocos violentos tentam se passar por ‘conservadores’, mas agem de modo análogo aos grupos milicianos que serviram de anteparo a regimes como o nazismo e o fascismo. Só que agora essas figuras estão em cargos que independem de ‘arruaceiros’ (camisas negras e SA) para queimar livros em praça pública: praticam o equivalente ao ato de queima ao proibir que crianças e jovens do seu país tenham acesso ao conhecimento e obras clássicas da literatura universal.
Querem alimentar uma geração de estúpidos, justamente como denunciavam obras que falam de sociedades autoritárias e distópicas – que agora vão parar no ralo dos banimentos.
Isso me lembrou da frase que Freud disse quando seus livros foram queimados pelos nazistas. Algo como “Na Idade Média, teriam queimado a mim. Hoje, contentam-se em queimar meus livros.”
É um movimento cíclico, vez ou outra retorna esse absurdo.