O 'Novo Cangaço Digital' toma as redes
Banditismo virtual tende a se expandir com o uso de técnicas de IA como o deepfake, desregulamentação tecnológica, desprezo pela ética e supremacia dos interesses das megacorporações de mídia digital.
O terror do Novo Cangaço
As imagens assustadoras de grupos fortemente armados tomando de assalto pequenas e médias cidades brasileiras, durante as madrugadas, se repetem de tempos em tempos. Por sua natureza, guardam ligeira semelhança com o modo de agir de bandos como o de Lampião nos sertões no início do século XX e até final das décadas de 1930 a 1940. A diferença é que os atuais são parte de agrupamentos do crime organizado batizados de “Novo Cangaço” pela mídia nacional. Sua atuação é voltada, em geral, a assaltos a bancos.
A forma como o policiamento e pessoas comuns desses municípios são surpreendidas, bem como as cenas de tiros com armas de grosso calibre, ampliam a sensação de insegurança país afora. Nenhuma medida das autoridades de segurança conseguiu deter o avanço desse tipo de crime, certamente preparado com muita antecipação e sigilo, a ponto de nunca se prever a próxima ocorrência.
Os ‘cangaceiros virtuais’
Outro movimento, aparentemente inofensivo, se desenrola no universo digital. Seria a versão desse banditismo, só que atuando mais especificamente nas redes ditas sociais. Suas armas? Contas falsas ou verdadeiras, seja no Twitter/X ou no Youtube, além de grupos no WhatsApp, Facebook, Instagram e Telegram. Eles se retroalimentam com telefones celulares, dinheiro de parlamentares extremistas, ajuda de criminosos, milicianos, militares da ativa e da reserva e até de grupos religiosos. Também usam redes de computadores, servidores espalhados mundo afora e contam com batalhões de pessoas dispostas a acreditar, postar, repostar e reproduzir, principalmente vídeos, em suas plataformas. Seu alcance e suas alianças ocorrem no plano internacional, o que facilita ainda mais suas ações.
Mentiras, falsificações, montagens de áudio, vídeo e texto são a base dessa produção em série de distorções da realidade. O universo paralelo se reproduz com discursos inflamados “contra o sistema”, isto é, qualquer coisa, grupo, instituição de Estado ou da sociedade civil que suas lideranças avaliem como potenciais entraves à sua proliferação. O primeiro mantra a ser veiculado e repetido à exaustão é que fazem isso em nome da “liberdade”, seja de expressão, de falar e de mentir. É uma interpretação que lhes convém de algo surgido lá no período do Iluminismo – a garantia da liberdade -, mas que agora virou pó diante da avalanche de atropelos cibernéticos e apopléticos.
‘Internacional’ da barbárie
A coisa não é restrita ao Brasil. O fenômeno não conhece fronteira ou idioma. Tem seus tentáculos e integrantes em todos os pontos do globo. Existe algo como uma espécie de ‘Internacional’ – um tipo de aliança ideológica com caráter (ou falta deste, a rigor) neofascista – que se espalha conforme avançam os governos e governantes de extrema direita ao redor do mundo.
A liderança dessa zumbilândia virtual é dividida entre ninguém menos que o atual presidente dos EUA, Donald Trump, e seu magnata de estimação e dono de uma dessas redes, o bilionário Elon Musk. Navegam ao redor deles nomes da política internacional, conhecidos nomes das corporações de mídia digital, dos negócios, das vendas globais e das finanças. Para surpresa de ninguém, um percentual gigantesco do PIB mundial aplaude e financia esse processo de deterioração das democracias representativas como as conhecemos desde as pregações do Barão de Montesquieu.
Cidadão comum até a página B
Na raia miúda do cotidiano, pessoas comuns tocam suas vidas no trabalho, nas famílias, nas igrejas e nos seus núcleos sociais e, não mais que de repente, parecem se converter em mão de obra gratuita para esse tipo de atividade. Tudo num simples teclar de um aparelho celular.
Existem, claro, os grupos especializados – como ocorre nos grupos criminosos tradicionais – em faturar e tirar proveito, inclusive financeiro, dessas atividades. Os cabeças desse processo podem ser recém-chegados ao mundo digital ou donos de currículos que vão da simples graduação universitária aos mais altos escalões acadêmicos, como os doutores e PHDs da vida. Gente fina, elegante e nada sincera. Moradores de condomínios de luxo ou de lugares simples. Senhorinhas e senhores de bom trato que, ao se apresentarem para o “serviço”, vestem suas segundas peles e passam a hostilizar autoridades, alvos indicados nas redes ou nos grupos virtuais dos quais participam, a começar desses das “famílias” ou das instituições ditas religiosas. Não importa se católicas ou neopentecostais. A coisa escalou para um nível de “democratização” da atividade mentirosa que seria ingenuidade acreditar tratar-se de algo “natural” ou normal.
O exemplo mais bem-acabado desse processo, no caso brasileiro, foi a invasão e destruição das sedes dos Três Poderes, em Brasilia, no dia 8 de janeiro de 2023. Foram muitos senhores e senhoras que deixaram o conforto de suas vidas para participar daquele trágico momento da política nacional, acreditando piamente estarem em uma “revolução contra o comunismo” ou coisa que o valha. O resultado é que muitos perderam sua liberdade individual, tiveram seu cotidiano virado de cabeça para baixo e ainda respondem a processos criminais ou estão na cadeia.
Os espertos de terno e gravata
Como não poderia deixar de ser, setores ditos conservadores viram nesse processo uma forma de ganhar dinheiro, ampliar seu poder sobre governos das cidades e dos estados, notadamente nos parlamentos brasileiros. As cidades estão infestadas de espertos engravatados que pregam o ódio a minorias, fazem arruaças reais e virtuais e mentem descaradamente para faturar com o engajamento em redes sociais. Ou então usam o acesso ao dinheiro fácil dos aparelhos de estado que ora ocupam – com mandatos obtidos graças a esses expedientes – e que financiam e se alimentam desse círculo vicioso de crimes virtuais.
Grosso modo, o Novo Cangaço Digital se divide em núcleos de modo a dificultar que suas lideranças sejam efetivamente punidas. Por isso, os atos de vandalismo registrados em Brasilia em janeiro de 2023 geraram prisões e punições, em sua maioria, àqueles que colocaram seus rostos diante das câmeras na invasão e depredação dos prédios públicos. As lideranças politicas que os insuflaram via redes, em sua maioria, curtem seu conforto, seus mandatos, sua vida fácil e usam seus fartos recursos financeiros para driblar a Justiça e escapar de punições. Sobrou para quem fez o serviço sujo e colocou as caras a tapa, ou seja, as famosas “tias e tios do Zap”. O baile segue com os engravatados vivendo como nababos. E rindo dos ditos “patriotários” de plantão.
Guerra total em 2026?
A próxima batalha, eles já anunciam, é o processo eleitoral de 2026. Vai ser ainda mais sangrento do que o visto em anos anteriores. Porque agora poderão lançar mão de ferramentas ainda mais poderosas de manipulação virtual.
Essa é uma das faces da falta de regras para o uso de mecanismos de inteligência artificial. E das redes. Por isso os donos das chamadas big techs lavam suas mãos e lutam pela manutenção de tudo como está atualmente – uma terra sem regra alguma. Trump faz acenos a esses magnatas e eles respondem com apoio a seu programa de governo. Difícil enxergar algo que detenha esse processo no curto prazo.
A sobrevivência das democracias ainda existentes está ainda mais por um fio. Ano que vem veremos como isso vai ficar. Só aguardar para ver o pior.
belíssima analise
Texto espetacular! Parabéns, Mestre!