Quem não quer ser um bilionário?
Breve pensata sobre o crescente apelo para enriquecer: como isso é um projeto de vida que muita gente abraçou e talvez ninguém saiba ao certo como seria viver nadando em dinheiro como o Tio Patinhas.
Vivemos, não é de hoje, uma epidemia de apelos que deságuam no velho sonho de enriquecer. Falo aqui de enriquecer muito. Sem limites. Afinal, quem não quer deixar a vida de perrengues financeiros, de dificuldades para pagar contas e morar numa mansão estilosa, comer do bom e do melhor sempre, realizar qualquer desejo que o dinheiro compra e ainda ser rodeado de gente que sempre está disposta a fazer tudo o que quisermos, e quando quisermos? Grosso modo, isso embute o universo do que seria “ser muito rico”, isto é, dos bilionários. Ser somente milionário perdeu até o charme nos últimos tempos, diante do apelo representado pela vida dos que acumularam e seguem acumulando fortunas dignas do principal personagem da Disney no imaginário capitalista, o Tio Patinhas.
É certo que estamos apenas numa fase em que esse apelo é mais forte, explícito, ajudado por imagens, “mentores, consultores e traders” que se multiplicam na internet, surfando na velocidade das redes sociais. Primeiro começam a atrair sonhadores falando no “primeiro milhão”, mas logo descobrem que a pessoa gostou da brincadeira e quer o segundo, o terceiro, o décimo… e depois quer o “primeiro bilhão” - isso se tiver “competência, ambição, trabalhar muito, investir no sonho” e, claro, seguir as fórmulas mágicas que fazem os reais, dólares ou euros ganharem forma de sinais magnéticos nas contas bancárias ou no metaverso das criptomoedas.
Esse caminho - os dotados de ambição desmedida descobrem depois - pode levar toda uma vida, pode nunca acontecer ou pode dar as caras de uma hora para a outra. Envolve também sorte e malícia, mas nunca prescinde de “técnicas, conhecimento, gente do ramo e truques” que somente iniciados nas finanças conhecem. É algo próximo do mundo do esoterismo, mal comparando: existem magos e magas, cujas bolas de cristal antecipam papéis, moedas, empresas, oportunidades e situações mercadológicas que são o pote de ouro no horizonte. Estão em seus relatórios, indicações e propostas que chegam de forma “personalizada”. Não falta quem acredite, invista tudo, perca o pouco que tinha e até a cabeça em nome do objetivo de “mudar de vida para sempre” - até ter seu carrão importado, seu jatinho, sua casa de praia cinematográfica, seu spa exclusivo e acesso a tudo e mais um pouco.
Quem leu o texto até aqui certamente notou pontas de ironia, talvez de inveja e desconhecimento do que seria o mundo dos muito ricos, ricaços, super ricos. Tem até muita suposição, mas não faltam pontas de realidade. Faltam mais coisas para que se complete essa pequena reflexão que mexe com a imaginação de quase todos nós desde que nos entendemos como gente. Todo mundo já sonhou com isso um dia. É fato. O que pode ter mudado, suponho, foi a realidade. Ou seja, a constatação de que essa guinada para o admirável mundo novo dos muito ricos é um funil tão estreito que nenhuma promessa de ficar rico é capaz de produzir em escala. É uma “conquista” para poucos. Todos, em tese, podem tentar, mas poucos conseguirão “chegar lá”. O que ninguém pode reclamar, dizem seus defensores, é que não tiveram “oportunidades”. “Sonhar não custa nada”, já diz o ditado. Não realizar o sonho é outra coisa.
Pensar sobre essa transformação na vida de qualquer pessoa é um exercício que envolve “valores morais” e outro conjunto de ideias dos campos da Filosofia, da Sociologia, da Ciência Polícia, da Economia e das chamadas ciências do comportamento. Mexe até com crenças religiosas, visto que muitos credos ditos neopentecostais descobriram, ainda nos anos 1970, fórmulas e apelos para misturar os sonhos de melhorar de vida e “ganhar dinheiro” ao mundo religioso. Deus, fé, dinheiro e nova vida andariam juntos, simplificando.
Na área dos estudos científicos, essa mudança obedece a variáveis que nenhum “especialista em finanças” conseguiria decifrar, por mais que saiba manejar conceitos, entenda de bolsa de valores, de investimentos ou do raio que o parta. Cientificamente, pode-se resumir o mundo do “ficar muito rico” ao processo de acumulação de riqueza de cada sociedade em cada época. E sempre haverá empobrecimento de determinadas parcelas da sociedade quanto maior for o número de muito ricos. É do jogo capitalista e isso não foi inventado por Karl Marx, por Adam Smith e nem por mim. É da natureza da coisa que chamamos capitalismo, ainda mais nessa fase, da “financeirização” de quase tudo no planeta.
Bom, mas o papo aqui não é sobre ser ou não ser capitalista, socialista, comunista, anarquista ou blá-blá-blá. É a respeito do que fazer com o tal “sonho”. É apenas sobre os mecanismos que o alimentam e o que a maioria faria se fosse elevada ao topo financeiro por qualquer razão.
O sonho não some e nem muda se alguém é contra outros ficarem muito ricos. Ou se acham isso uma ilusão, um absurdo e algo que apenas poucos alcançarão ou alcançariam. Trata-se, a rigor, de algo humano, introduzido em nossa cabeça desde pequenos. O que pode variar é como isso mudou - ou não - ao longo do tempo. De outro modo: se a pessoa que sonhava em ser muito rica viu que já passou seu tempo, que perdeu essa “ambição” ou que sequer teria mais tempo de vida para curtir a vida adoidado nadando em muita grana no mundo para poucos.
Não se pode negar, filosoficamente, que isso envolve também as frustrações humanas, o desejo de ser importante e reconhecido, de se destacar dos demais ou mesmo de ter o conforto que somente quem tem dinheiro conhece na vida real. Não surgiu do nada o conceito popular resumido no ditado “dinheiro não traz felicidade: manda buscar”. Perfeito como ditado, mas frustrante na vida prática, visto que nem todo mundo é feliz com o que tem, inclusive os bilionários, já que muitos disputam em um seleto grupo quem acumula mais, quem é o maior etc. A lista da revista Forbes não existe porque acharam interessante, mas por uma demanda de quem tem de se destacar de seus pares como os que “têm ainda mais”.
Finalizando, entendo que ninguém deve abrir mão do desejo de ficar rico, se dar bem na vida, ser milionário, bilionário ou qualquer coisa do ramo. Cada um faz seu juízo e segue sua natureza, seu destino. Isso ninguém cobra e ninguém vende. Ainda.
Talvez ninguém saiba o que tem do outro lado da vida de quem está na lista da Forbes ou de qualquer publicação que traz os super afortunados. E que existe um tempo de existência que é a barra final desse sonho. Do sonho de existir.
Dinheiro aos montes pode prolongar a vida até, sabe-se lá, 100 anos ou mais. Ou pode encurtar. Mas não pode comprar o passaporte para outro sonho - a eternidade. Pelo menos até onde o mundo nos aponta.
De todo modo, um viva a todos os sonhos, com modéstia, com muito ou pouco dinheiro. Eles, no fundo, nos alimentam como seres. Nos fazem respirar.
PS - Cresci com esse sonho, como quase todo mundo, mas vivo bem longe dele e muito bem sem ele. Meu projeto envolve viver bem. E estou bem assim.