São Paulo (quase) não tem plural
Ares e falares da metrópole que se faz corrida na própria linguagem. Que come o "s", engole o sanduíche e devora gentes em várias camadas. Entre fumaça e garoa, sua opulência esconde beleza e plurais
Cidade de São Paulo à noite. Fotos do acervo do autor
Caetano Veloso, Tom Zé, Belchior, Criolo, Emicida, Eu, Você, Seu Zé, Dona Maria e todo mundo sempre estivemos certos quando olhamos estupefatos e encantados para a monstruosidade e a grandiloquência da cidade de São Paulo. Zélia Duncan, olhando de fora, um dia profetizou que aqui se viveria “na medida do impossível". Existe verdade mais doce, crua e paulistana do que esta?
São Paulo é uma cidade que abriga um misterioso Triângulo das Bermudas dos plurais. Das falas e das pessoas. Aqui o mundo se esconde e se esgueira entre casebres e mansões, na velocidade dos seus carros, barulho de helicópteros e aviões. A toda hora tem gente circulando pelas passarelas do PIB ou exibindo a pobreza de um ‘chopis com dois pastel’. Cabeças pensantes se batem e se debatem, enquanto a nata da inteligência nada de braçada entre a indigência e a opulência. Tudo isso em meio ao desespero e o choro de quem sequer tem onde cair por se ver obrigado a circular indefinidamente entre automóveis, faróis e viaturas da PM.
São Paulo não tem poesia. Tem sons, estrondos, aplausos, rios escondidos, que cantam em suas águas subterrâneas e em seus esgotos o seu passado e as suas glórias. Tem poetas aos montes, entre morros de casas de madeira, de barracas, em cada esquina, em cada Sesc, Casa de Cultura, sebo ou pardieiro perdido. Noutras, os bardos vivem em bibocas com gente espalhada nos becos e vilas. Aqui, todo mundo sabe e aprende desde cedo, nas madrugadas, que se morre sem amores.
Uma hora se erguem painéis de luzes para celebrar tudo o que existe no mundo. Noutras, o silêncio abismal das suas noites geladas de inverno infernal. Os seres recolhidos, encolhidos, desvalidos. E aqueles pequenos núcleos que dormem em suas casas-fortes do Tio Patinhas, como se vivessem minutos por aqui e horas intermináveis nas pontes aéreas entre NYC-Londres-Paris-Budapeste.
As grifes e o sobe-desce da Bolsa festejam o sangue e o suor dos bolivianos e africanos e a testa franzida de outros milhões de migrantes e imigrantes. Protegidos em seus bunkers de concreto, não sabem dos sacolejos dos trens lotados, do Metrô apertado, das linhas de ônibus que cortam as veias da cidade e distribuem gente em cada um dos seus 1.500 quilômetros quadrados. Uma gente distante de tudo, que acha que o comércio popular é suficiente para atender a todos os sonhos e desejos de quem vem passar suas camisas finas e deixar seus quartos, banheiros, sapatos e sapatênis sempre impecáveis.
Quem olha São Paulo de cima, cruzando os céus, tende a achar bonita uma arquitetura que encobre muito do real. As sombras dos prédios e das casas, em determinadas horas, são a mais perfeita tradução do que nunca foi a Rita Lee, um ser de luz que a cidade pariu sem querer. Ela, como os gritos dos desvalidos, apareceu entre nós tal qual um assombro que todo mundo sabe, mas que teimam em dissimular. Sua garganta e seu fôlego foram sua identidade. Desde sempre sabemos que concretos não rendem poesia, mas amassam pilhas e pilhas de corpos todos os dias. A massa que faz o pão é a mesma que entope as vias tortas da cidade, parada em seus carros.
Entre vias, vielas, becos, esquinas pouco iluminadas, calçadas de dar medo e o cheiro quente do asfalto, São Paulo se faz distante e aprisiona aqueles que a amam ou a escolheram como sua morada definitiva ou possível. Não entram nessa conta os que vivem enclausurados contando seus metais, pois podem viver horas por aqui, dias, meses e até anos, mas sua alma e seus pés estão acorrentados a outras realidades. Melhores ou piores do que a maior metrópole brasileira pode oferecer. Aqui pode ser o porto, o caminho de passagem, a estrada da perdição ou das frivolidades. Pouco importa a quem não precisa sentir o cheiro das águas fétidas do Rio Tietê.
Pode-se ter diversidade de vários tons em lugares como São Paulo e, ao mesmo tempo, inexistir o plural em seu sentido não gramatical ou como prega a língua culta. Aliás, a linguagem culta que pode ser a mesma dos que xingam delicadamente, por vezes. Dos que explodem de ira por pouco. Ou que esmagam seus subordinados pela falta de um ingrediente na comida. A gana, a grana, a fome, a miséria mental e os escrúpulos são produtos em falta em camadas que tudo podem comprar com o dinheiro que circula sem parar por aqui. Aprende-se o inglês, o francês, o italiano, o chinês, o norueguês ou o finlandês, mas pode-se viver simplesmente com o falar rasteiro do preconceito e da mediocridade. É a regra de mercado que atende fregueses e freguesas conforme o gosto e o cartão de crédito ilimitado de certas pessoas.
O plural que falta pode sobrar em comida farta numa mesa. A conjugação verbal escarrada na rua ou no trabalho pode vir a ser um poema que se aplaude por não fazer o menor sentido gramatical ou poético. As frases se fazem para empurrar pessoas para suas atividades rotineiras. Ninguém precisa pensar muito quando o que se quer é apenas trabalhar para fazer a ciranda manter seu ritmo. Quase sempre não importa a diversidade de cores, de cabelos, de corpos, de estilos, de modas, de dissensos, de meninas, meninos ou uma diversidade de gêneros que dançam ao sabor do vento. Que sonham com oportunidades e tempos que podem nunca vir a ser. Que serão diluídos num trabalho servil qualquer.
Por outro lado, loucos de várias áreas do conhecimento saem pelas suas ruas, por aqui e por ali, falando como se deveria falar. Uns poucos que querem corrigir as expressões. Mudar as placas de ruas e avenidas cheias de erros grosseiros. Talvez nunca consigam mudar a sutil grosseria que nos caracteriza como cidade. Mas, certamente, isso estamparia a certeza de que aqui surgiu uma civilização desprovida de muitas coisas, mas rica em singularidades que o dinheiro pode comprar, mas que nunca será um mundo verdadeiramente humano e solidário.
É inegável a capacidade paulistana de ter quase tudo o que já inventaram no mundo. E de muitas coisas que ainda estão por vir. Da melhor comida, bebida, roupa, carro, estrada, presente, joia, requinte, luxo, beleza, poder, trabalho, inovações, tecnologias, diversão, criatividade, futurismo, parques, verdes, línguas de todos os cantos e modas sem fim. De concentrar serviços, hospitais, escolas, universidades, conhecimento, pesquisa e produzir riquezas para alimentar milhões de bocas a todo minuto ou encher cofres de alguns em segundos. Somos a contradição da contradição elevada à décima potência. Meio que nos orgulhamos disso e queremos que nos vejam assim.
Mas os ares e falares da nossa cidade são como a névoa de suas manhãs de inverno: encobrem nossa tristeza com o mundo, nos enchem de alegrias e de roupas bonitas, de ternos, gravatas e vestidos finos. E nos fazem chorar em nossas paredes e banheiros com belo acabamento e nenhum remédio que nos cure da solidão.
São Paulo é a solidão no plural. Aqui erguemos prédios para o vazio.
Viver aqui é saber que nunca passaremos disso.