Uma aula que arrecadou quase R$ 50 milhões
Longa brasileiro "Ainda Estou Aqui" revolve memórias da ditadura militar de 1964 que foram turvadas pela diminuição do número de leitores/as e pela baixa intensidade democrática desde a Nova República
Cartaz de divulgação do filme Ainda Estou Aqui/Reprodução
Ir ao cinema para assistir a uma aula de história nunca foi algo comum na vida do brasileiro médio desde que saímos formalmente da ditadura militar, em meados de 1985. Eis que temos a grata surpresa de um filme nacional falando de política, tortura, sequestros e assassinatos na ditadura militar ser assistido por mais de 2,3 milhões de brasileiros e que arrecadou cerca de R$ 50 milhões - pelo menos até o início deste mês de dezembro de 2024.
Sem transição real
O Brasil, até hoje, não desenvolveu propriamente uma cultura democrática, mesmo tendo saído de uma ditadura há quase 40 anos. Demos um jeito de realizar conchavos políticos para fazer de conta de que não vivemos um regime de exceção - pelo menos para uma parcela dos nossos compatriotas. Fomos meio que nos acostumando ao clima de ‘transição à brasileira’, de episódio em episódio estranho de violência política, como se realmente houvéssemos alcançado uma estabilidade democrática digna de países escandinavos. Na prática, por aqui tivemos apenas um arremedo do que poderia ser uma transição real para a democracia, e por isso vivemos episódios turbulentos de tempos em tempos.
Resgate da família Paiva
Quando falei de “aula de história” fiz referência direta ao filme Ainda Estou Aqui, longa brasileiro dirigido pelo cineasta Walter Salles, centrado na narração dos acontecimentos que envolveram o sequestro, tortura e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva (vivido nessa adaptação por Selton Melo), ocorrido em 1971. A obra mostra, de forma crua, em vários momentos, os porões do regime civil-militar, a censura, as perseguições a seus opositores e sua face mais sanguinária como nunca antes um filme nacional talvez tenha mostrado - principalmente ao explorar com muita propriedade o universo da família Paiva -, conforme registros em livro feitos pelo jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva acerca da história de sua mãe, Eunice Paiva.
Com cuidado primoroso na fotografia, a produção nos leva a reviver aqueles anos em que uma família de classe média do Rio de Janeiro vive clima de aparente tranquilidade e tem seu destino alterado paulatinamente, quanto mais avança o aparelho de repressão dos militares, em conluio com seu braço civil. E Eunice Paiva, vivida na fase inicial por Fernanda Torres e no final por Fernanda Montenegro, descobre o mundo real da política, das perseguições e da ditadura por meio do envolvimento do seu marido - nessa época já de forma indireta - com organizações que combatiam o regime militar. Ela é tragada para esse universo.
Sem dúvida, um dos pontos mais tristes e altos do filme foi a sequência em que são revividos os acontecimentos de como o regime sugou a vida de Eunice Paiva de uma hora para a outra. E sua forma dura e forte de resistir a tudo aquilo e viver um luto sem cadáver, após o sequestro e desaparecimento do marido Rubens. Seu entorno, sua vida, sua casa, seus filhos e toda a estrutura familiar foi destroçada, mas ela mostrou uma dignidade e uma resistência impressionantes. Impossível não chorar e não se emocionar várias vezes nessa parte do filme, ante a dor e a brutalidade dos torturadores.
Lições do filme
Entendo que a experiência de ver um filme é sempre particular, mas uma produção dessa natureza envolve elementos que transcendem o universo das vivências puramente voltadas para a emoção. Talvez despertem a angústia, a dor e promovam descobertas ou redescobertas - e isso o cinema tem como magia no seu formato. A mais provável é que carregue reflexões sobre o tipo de sociedade na qual vivíamos naquele tempo, em especial espectadores e espectadoras mais atentas ao ambiente político que o Brasil viveu desde o rompimento do regime democrático em 1964 até sua derrocada e a volta do poder aos chamados “civis”, nos anos 1980.
No mais, será possível ter como lição que alguns dos instrumentos e métodos de ação dos militares de outrora foram apropriados pelas corporações militares brasileiras e até hoje não saíram do seu mundo e dos seus mecanismos de formação. O filme pode ajudar a repensar essa estrutura para alguns campos da política brasileira, o que evitaria a repetição de arroubos ditatoriais como aqueles e como os que assistimos recentemente no país com os casos de 8 de janeiro de 2023 e seus desdobramentos em curso nas investigações da Polícia Federal e nos processos tocados pelo STF. Mas isso tudo envolve pontos para outras reflexões.
Por enquanto, o filme Ainda Estou Aqui é um forte nome brasileiro ao Oscar, leva milhões ao cinema, emociona, faz pensar e refletir, enquanto transforma a telona em uma gigantesca sala de aula de história do Brasil.